No Sul do Brasil, particularmente na Ilha de Santa Catarina, com a extinção dos Sambaquis, o estabelecimento da cultura açoriana trouxe em sua bagagem cultural, hábitos e costumes, que podem ser constatados ainda hoje: no urbanismo, na arquitetura, na gastronomia, no folclore, no artesanato, na religiosidade; no jeito de ser ilhéu. E contrapondo-se aos efeitos inerentes à industrialização, ainda persistem, mesmo que em locais específicos, a marcante forma de expressão cultural açoriana: nas rendas de bilro da Lagoa da Conceição, na pesca do Sul da Ilha, no fabrico da farinha da Costa da Lagoa, na produção de cachaça em alambiques do interior da Ilha, no artesanato de pequenos grupos de pessoas, na música e no folclore de algumas comunidades, nos mitos e lendas de Franklin Cascaes, na arte de Eli Heil, Tercília dos Santos, Meyer Filho, Willy Zumblick, Martinho de Haro, e tantos outros que admiramos.
     Remonta aos primórdios da civilização humana os contínuos processos de manifestações culturais, bem como, a produção de instrumentos e utensílios necessários à sua sobrevivência frente ao meio ambiente. Neste âmbito estão incluídas as ferramentas e os objetos destinados às atividades do dia-a-dia; da mesma forma, que uma infinidade de adornos e artefatos, seja por razões meramente decorativas, seja por força de manifestações artístico-culturais. Após o período de glaciação do Paleolítico, no Neolítico, indícios arqueológicos demonstram, que o sair das cavernas conduziu o homem primitivo ao desenvolvimento de recursos para atender às novas necessidades; e com o crescer populacional, a uma incondicional organização social.
     Valendo-se daquilo que o meio lhe dispunha, aquele Homo faber passou a lançar mão de elementos da natureza ao seu redor como: a pedra, a madeira, as fibras, a terra, e mais tarde os metais. Associados a outros elementos como a água e depois ao fogo, ao processo de transformação dessas matérias-primas em novos produtos, genericamente, denominou-se de artesanato. E dentre os diversos tipos de artesanatos que foram aos poucos surgindo, neste trabalho, deter-nos-emos especificamente sobre aqueles tiveram como substrato a argila.
     Tendo a terra como subproduto, a argila passou a desempenhar uma função cada vez mais relevante na elaboração de utensílios, artefatos e ornamentos; configurando-se num importante tipo de artesanato, em função da abundância natural, facilidade de manuseio e capacidade de materializar formas. Implicitamente contidas nos materiais produzidos, foram exatamente essas formas, que moldadas através de mãos humanas, trouxeram à tona novas formas de expressão do ser: diferentes povos, diferentes culturas, diferentes formas de expressão; trazendo consigo representações inconscientes, agora corporificadas em matéria.
     E foi com base nesta forma de expressão, relativamente ao artesanato em cerâmica desenvolvido na Ilha de Santa Catarina, que em 2002 tive o primeiro contato com um trabalho que me marcou definitivamente. Foi numa feira de exposições, anexa à 4ª Fenaostra - Festa Nacional da Ostra, realizada no espaço de eventos do Centro Sul em Florianópolis. Dentre os muitos estandes que traziam os mais diferenciados trabalhos artesanais, me chamou a atenção a expressividade dos personagens, a qualidade de acabamento e a sofisticação das peças apresentadas por três irmãs, três Marias: Maria de Lourdes Costa Richter, Maria Nazareth Costa Peixoto e Maria Elizabeth Costa Silva, que identificavam seu grupo como: ResgatArte. Lembro até hoje que eu e meus dois filhos, ainda pré-adolescentes, ficamos comentando sobre uma das Bernunças, no qual um dos integrantes da peça em argila, trazia nos pés a pintura de um calçado semelhante às sandálias Havaianas: ideia que consideramos muito criativa e original.
     O imaginário Ilhéu é assim: é formado por um rico folclore, repleto de tradições, causos, músicas, lendas e mitos. O folguedo do Boi-de-Mamão, com seus cantadores e músicos, e seus principais personagens: o Boi, a Cabra, o Cavaleiro, a Bernunça e a Maricota; contém raízes ibéricas. As diversas representações da Bruxa da Ilha de Santa Catarina, outro importante personagem do figurativo mítico, provavelmente, possui conexões com o lendário Celta; e tantos outros personagens-símbolo, que formam e contextualizam o inconsciente da Ilha de Santa Catarina.
     Assim, foi neste contexto de personagens e tradições centenárias que revisitei, depois doze anos, as obras dessas três irmãs: Lourdes, Nazareth e Betinha. Betinha, a caçula das três irmãs me apresentou o acervo onde ela guarda com grande carinho imagens de personagens do folguedo do Boi-de-Mamão e do folclore em geral: Namoradeiras; Lapinhas, o Pescador e o Vendedor Ambulante; etnias colonizadoras como portugueses, indígenas e africanos; galinhas caipiras, d’Angola e carijó; panelas, jarros, caçarolas, marmitas e alguidares; móbiles; e diversos aspectos das tradições açorianas e da religiosidade católica; incluindo as Bruxas do interior da Ilha: benzedeiras, curandeiras e feiticeiras.
     Um destaque especial deve-se dar à Bruxa Leca, uma criação das três irmãs-Marias, sendo esta uma das representações da Bruxa da Ilha em tamanho real; neste caso, protagonizando a imagem de uma velhinha confortavelmente sentada em uma cadeira, que possui em seu colo um cofrinho e um pote com bilhetes enrolados contendo dicas. Os que contribuírem, depositando uma moeda no cofrinho recebem os “Conselhos da Bruxa Leca”.
     Diante de tanta beleza, imaginação e originalidade, me foi possível constatar com orgulho, que ainda nos dias de hoje, a partir da argila que vem da terra e da milenar técnica da cerâmica, dedicadas e delicadas mãos, inspiradas em memórias da infância e em imagens primordiais, contribuem com a preservação do imaginário da terra; este '...pedacinho de terra perdido no mar...', tão bem evocado na poética do saudoso Zininho: a Ilha de Santa Catarina. E mais do que isto, além de preservarem a milenar arte de modelar formas, eternizando-as através da técnica da cerâmica e mantendo viva uma ancestral cultura catarinense.
     Meu especial agradecimento à amiga e artesã Maria Elizabeth Costa Silva por abrir as portas do mundo encantado dos personagens do folclore, da cultura, das lendas e das superstições da Ilha da Magia, através do rico acervo de esculturas em argila de sua autoria e de suas irmãs: irmãs Maria de Lourdes Costa Richter e Maria Nazareth Costa Peixoto, às quais, 'in memoriam', dedico este trabalho fotográfico-documental.

Agradecimentos especiais:
- À artesã Sra. Maria Elizabeth Costa Silva, por sua participação neste trabalho, in loco, durante a captação das imagens no Sítio de Ratones, assim como, por ter realizado a descrição de cada uma das imagens selecionadas. Foi fundamental sua participação para o resgate de informações e acervo; como também, por ter autorizado a realização desta exposição.
- Ao Sr. Flávio Tito Peixoto proprietário do Sítio de Ratones onde foram feitas as locações de imagens do acervo das peças em argila.
- À Sra. Iara Peixoto da loja Casa de Maria Decor, Rua Lauro Linhares, nº 624, loja 1, Trindade, Florianópolis, SC. Site: www.casademariadecor.com.br. Fone: (48) 3206-5385.
- Ao Sr. Janga, à Sra. Semia e ao Sr. Rodrigo da Casa Açoriana, rua Cônego Serpa, 30, Santo Antônio de Lisboa, Florianópolis, SC. Site: www.casaacoriana.com.br. Fone: (48) 3235-1262.
- À psicóloga Ana Cláudia Judice Alleotti.

Contato sobre o trabalho das Três Marias, com Maria Elisabeth Costa Silva, pelo email: maelcs@gmail.com