Paleolítico, Neolítico e Idade do Bronze foram períodos da Pré-História caracterizados por lentas e progressivas transformações das civilizações. Antecederam a Idade do Ferro, que foi marcada pela descoberta do metal que proporcionou a maior “revolução tecnológica” até então: o ferro; superior ao bronze em relação à dureza e à abundância de jazidas, assim como, na elaboração de ferramentas, armas e joias. Atribui-se aos Celtas a introdução da metalurgia do ferro na Europa (1.200 a.C.). Oriundos do mundo indo-europeu - localizado ao sul da Rússia estendendo-se por entre os montes Urais, o mar Cáspio e o mar Negro - estabeleceram-se inicialmente em Hallstatt, Áustria; trazendo para a Europa uma verdadeira revolução no campo militar, na agricultura e no artesanato. A partir daí expandiram-se para a Europa Central e Ocidental, chegando até a Ásia Menor.
     Mircea Elíade em Ferreiros e Alquimistas descreve: “O alquimista, assim como o ferreiro, e, antes dele, o oleiro, era um ´senhor do fogo´. É através do fogo que ele opera a passagem da matéria de um estado ao outro. O oleiro que conseguiu pela primeira vez, graças ao calor das brasas, endurecer consideravelmente as ´formas´ conferidas à argila... O que o calor ´natural´ - do Céu ou do ventre da Terra - amadurecia lentamente, o fogo amadurecia num tempo insuspeitado. O entusiasmo demiúrgico surgia desse obscuro pressentimento de que o grande segredo consistia em aprender como ´fazer mais depressa´ do que a Natureza... O fogo revelava-se não só o meio de ´fazer mais depressa´, mas também de fazer uma coisa diferente do que já existia na Natureza: era, portanto, a manifestação de uma força mágico-religiosa que podia modificar o mundo, que por conseguinte, não pertencia a este mundo. ... os ferreiros são considerados ´senhores do fogo´.”
     ´Senhores´ cujo exercício da profissão está intimamente relacionado ao domínio das forças humanas sobre as forças da natureza; às quais dialogam em ritmo sincrônico transformando-se mutuamente. A esse permanente pulsar de forças interiores que agem à sombra do conhecimento, e estão associadas a necessidades primordiais do homo faber, constituem-se determinantes na conformação incipiente daquilo que posteriormente nominou-se como Alquimia; período onde combinações de elementos foram procedidas nas tentativas de serem encontradas formulações ideais. O lapis? Estavam também ligadas ao movimento de emersão de forças ocultas, tanto quanto, de inúmeros mitos, ritos e mistérios correspondentes ao poder sobre a matéria inerte e a sacralidade da matéria viva. Experiências que, ao longo do tempo, foram se tornando substrato para grande parte das ciências que hoje conhecemos. Nas palavras daquele que é considerado o primeiro ferreiro, Brahmanaspati védico, que forja, ou melhor, solda o mundo: seu trabalho de forja é a constituição do ser a partir do não-ser
     Da Filosofia de Bachelard em A Terra e os Devaneios do Repouso, encontramos a seguinte reflexão: “Se pudéssemos sistematizar todas essas solicitações que nos vêm da matéria das coisas, retificaríamos, parece-nos, o que há de demasiado formal em uma psicologia de projetos. Distinguiríamos o projeto do contramestre e o projeto do trabalhador. Compreenderíamos que o homo faber não é um simples ajustador, mas é também modelador, fundidor, ferreiro. Ele quer, na forma exata, uma matéria justa, a matéria que pode realmente sustentar a forma. Ele vive, pela imaginação, esse sustentáculo; gosta da dureza material, que é a única capaz de dar duração à forma.”
     Já Jung em Psicologia e Alquimia, sobre a mítica que envolve a Alquimia, menciona quatro fases no processo de transformação, as quais, em essência, são caracterizadas por suas cores originárias: nigredo, rubedo, albedo e cauda pavonis, tecendo também considerações sobre a existência humana e a individuação, traçando paralelos entre as questões religioso-sagrado concernentes à metáfora alquímica como sendo um processo de projeção interior. São reflexões que, assim como de tantos outros pensadores, traçam contornos sobre questões que permeiam o perfil humano à luz dos tempos.
     Inerente à tecnologia e às singularidades do ser humano, o desenvolvimento da sua qualidade de vida, das espécies e do meio-ambiente traz consigo a necessidade da otimização dos processos e dos materiais, sendo as pesquisas e as descobertas protagonizadas pelas ciências; agentes determinantes da velocidade e do sentido que o mundo se move. A História é o testemunho real do quanto o tempo cronológico também tem sido uma variável propulsora adicional a essa fórmula visível, não-visível, ao qual estão sujeitas todas as coisas: vivas ou não. Existe um movimento potencial sempre pronto a despertar de sua latência, e exercer a tarefa de reconduzir a materialidade das substâncias a novas e sucessivas transformações; seja pela força da própria natureza no seu acomodamento natural, seja pela mão dos homens.
     O ferreiro, assim como todos os homens, está inserido nesse contexto de reflexões. No entanto, ao desempenhar sua ambivalente tarefa de forjar a matéria tem o benefício de usufruir da maleabilidade do metal e a ele estabelecer ´funções´, ao mesmo tempo em que lhe imprime ´formas´. Assim, à medida que transforma o material também se transforma internamente. Tal qual Hefesto, exerce seu deífico ofício pleno de sentido e o faz a serviço da obra divina, sendo porquanto: uma imagem de Deus enquanto forjador.

     Ao realizar este trabalho e vivenciar um pouco do dia-a-dia do ofício do ferreiro, não deixou de ser para mim uma experiência um tanto quanto incomum. Observar a técnica, as instalações, os procedimentos, o manuseio das ferramentas: martelos, bigornas, pinças... o forno, a furadeira, a esmerilhadeira... a tecnologia dos materiais, os processos da forja, a têmpera, a fresa, a modelagem, a torção do ferro... o ambiente de trabalho: o calor, a poeira, os sons, os gases... Observar o ferro, o aço, o metal... suas cores a frio e a quente... o antes e o depois... Ver as peças concluídas... Um mergulho que retrata um pouco do mundo no qual o trabalhador do ferro está envolvido.
     E esse foi um pouco do mundo que encontrei quando em junho de 2014 iniciei este trabalho fotográfico com o jovem ferreiro Wagner Thaler. Foram dois anos e algumas visitas à sua oficina acompanhando o cotidiano do seu trabalho. Fui também a outros lugares na cidade e na região onde haviam obras suas já concluídas. Nascido em Treze Tílias em 1983, Wagner é descendente de famílias de imigrantes austríacos colonizadores: os Felder e os Thaler. Morou entre os 11 e os 22 anos de idade na Áustria, onde trabalhou por três anos e meio em empresas situadas no Estado de Vorarlberg: um ano e meio na Schlosserei Bartl em Nüziders e dois anos na Schlosserei Gruber em Raggal; sendo que essas empresas possuiam contrato de aprendizagem com a escola profissionalizante na qual se formou em Metal-Mecânica: a Landesberufsschule em Bludenz, também no Estado de Vorarlberg. Depois que retornou a Treze Tílias há doze anos, tem atuado como ferreiro profissional nos últimos oito anos, desenvolvendo um trabalho diferenciado aplicado a várias utilizações como: grades de ferro trabalhado, corrimãos, sacadas, cruzes de cemitério, puxadores de portas, placas, dentre tantas outras; sendo uma de suas principais características a customização das peças empregando nelas um acabamento artístico único. Foram gravados também depoimentos que resultaram no vídeo de 31 minutos a seguir, onde o próprio Wagner relata algumas de suas experiências, impressões e reflexões acerca do ofício que exerce.


     Nos seus depoimentos Wagner mostra e comenta o poema escrito para uma canção, composto em 06/09/1942 por Johann Rohrer, o primeiro ferreiro de Treze Tílias. Nascido em 24/02/1906 na cidade de Kundl no estado do Tirol, Áustria, Johann era ferreiro profissional. Chegou a Treze Tílias em 13/10/1933 juntamente com outros 84 imigrantes, grande parte deles do estado do Tirol. Durante a organização da colonização ficou encarregado de ser o ferreiro da nova colônia, profissão muito demandada em virtude das rudimentares condições de trabalho da época. Desempenhou seu ofício desde sua chegada até a data de sua morte 19/03/1977, totalizando 43 anos de trabalho. Entre tantos trabalhos que realizou Rohrer legou à cidade de Treze Tílias as cruzes que até hoje permanecem no topo das torres da Igreja Matriz Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E é com o seu poema Lied der Schmiede, ´Canção do Ferreiro´ (com tradução livre de seu neto Carlos Eduardo Rohrer Felder), e gentilmente cedido por sua família, que concluo esta exposição virtual dedicando-a a ele e a todos os ferreiros; que apesar das agruras do sistema, do tempo e da vida, ainda acreditam e persistem em suas jornadas a serviço de um mundo melhor. Dedico também este trabalho aos imigrantes pioneiros que junto a Johann Rohrer, com bravura, não mediram esforços em construir no coração do Estado de Santa Catarina os pilares de uma pequena comunidade que viria se tornar a linda cidade de Treze Tílias: o “Tirol Brasileiro”.

Lied der Schmiede Canção do Ferreiro
Wir Schmiede sind ein rauch Geschlecht	Nós ferreiros somos uma brava linhagem
Und dienen Gott als treuer Knecht	E servimos Deus como fiel criado
Er gab uns unsere breite Brust	Ele nos deu o peito largo
Den festen Arm, die wilde Lust	Os braços fortes, a vontade selvagem
Unsere Werkstatt ist ein Gotteshaus	Nossa oficina é uma casa de Deus
Drin laeut es hell tagein tagaus	Lá dentro toca-se nitidamente dia a dia
Wenn unsre Faust den Hammer schwer	Em nosso punho o pesado martelo
Dem Herrn der Erze schwingt zur Ehr	Os senhores do minério martelando pela honra
Schlag zu Gesell.	Batida para o trabalho.
Uns Ambos ist ein Hochaltar	Nossa bigorna é o altar principal
Dran trauen wir manches gute Paar	Afinados confiamos muito no bom par
Wir trauen den Huf das Eisen an	Nós confiamos no aço na ferradura
Die Schar den Pflug das Schwert den Mann	No povo do arado e na espada dos homens
Wen heis deine Flamme sie umloht	Quando a sua quente chama treme
Dann gluehn die ersten Bräute rot	Então brilham as primeiras noivas vermelhas
Zum Tanz hält sie die Zange gepakt	Para a dança ela segura a embalada tenaz
Ihr Hammer aufgespielt im Tackt	Seus martelos tocados no tempo
Schlag zu Gesell.	Batida para o trabalho.
Die Funken sprühen der Blasebalg faucht	As faíscas centelham com o rosnado do fole
Es zischt die Glut in Fass getaucht	Assobia a brasa no barril mergulhada
Wir Schmiede sind die Herrn der Erd	Nós ferreiros somos os senhores da Terra
Und aller wessen die sie naehrt	E de todos seres que ela nutre
Wir schmieden Pflueg Wir Schmieden Brot	Nós forjamos arado nós forjamos pão
Wir schmieden Krieg Wir schmieden Not	Nós forjamos guerra nós forjamos aflição
Wir schmieden Ketten fuer den Knecht	Nós forjamos correntes para o servo
Und Schwerter für ein frei Geschlecht	E espadas para uma geração livre
Schlag zu Gesell.	Batida para o trabalho.
Der Ambos klingt, der Hammer singt	A bigorna soa, o martelo canta
Die Flamme aus der Esse springt	A flama salta pela chaminé
Und kommt der Teufel uns ins Haus	E entra o diabo em nossa casa
Wir jagen ihn zum Schlot hinaus	Nós o afugentamos chaminé afora
Wie ersichs ertauch mit Gefauch	Como ele mesmo emerge com um sopro
Er muss dahin in Russ und Rauch	Ele deve ir em fuligem e fumaça
Wir Schmied sind ehrlich Gottesschmied	Nós ferreiros somos sinceros ferreiros de Deus
Und fuerchten Not und Teufel nit	E não tememos desgraças nem demônios
Hallo? Schlag zu Geseel.	Olá? Batida para o trabalho.

Dreizehnlinden, am 6, September 1942
Treze Tílias, 6 de Setembro de 1942 (domingo)